Eu faria sessenta anos em doze de setembro de 2010. Era uma terça-feira, treze de abril. Lamento não informar a hora: é que eu estava ocupado, morrendo.
Recordo-me do barulho, de muitas vozes, de gemidos e de coisas do tipo “é particular?”, “qual é o plano de saúde dele?”, “que aconteceu?”. Também me lembro do pessoal de branco mexendo aqui e acolá em mim, com a mesma delicadeza que um mecânico fuça um carro. Em seguida, minha visão clareou um pouco, meus ouvidos escutavam melhorzinho, porém meus movimentos padeciam. Vi minha mãe, velhinha, acariciando-me e chorando, enquanto o pessoal de branco tentava mantê-la afastada. Meu pai estava num canto da enfermaria, como se lamentasse algo; sentindo-se, talvez, impotente ante meu estado; e o pessoal de branco, tranquilo, com o esnobe ar de controle da situação. Nesse ínterim, um filme me vinha à mente: Meus filhos! meu Deus! que eu poderia ter feito mais por eles com a condição financeira que tive?! Será que fui justo? Aquelas palmadas foram oportunas? E aquele brinquedo que nunca pude comprar?! Talvez eu os tenha abraçado pouco. Vão se lembrar com carinho de mim? Quem vai protegê-los? E minha esposa? por que menti tanto pra ela? por que não a beijei mais? não a amei mais?
No dia em que morri, pedi a Deus mais uns dias de vida para que eu pudesse me desculpar com meus pais, pois eles estavam certos. Mais um tempo quis para fazer com a família aquela viagem que sempre prometi, e a tatuagem com “TE AMO, BIANCA!” que hesitei. Nesse infeliz dia, implorei mais uns segundos para rever algumas escolhas.
Incrível que, no dia em que morri, não me preocupei com céu nem inferno, mas com as contas que não paguei, com o o único segredo que guardei e com os males que causei (o eco é de propósito. Afinal, quem, na efêmera vida, está livre de todos os vícios?!).
A essa altura, a dor que, há horas, me varava o corpo já não tinha importância. Incomodava-me a morte me sufocando sem que o pessoal de branco percebesse meu desespero. Era como tentar acordar de um pesadelo terrível.
No dia em que morri, não percebi cheiros, nem sabores, nem sorrisos: apenas dor, agonia e lamento. Não entendo o porquê desse sofrimento último se toda a minha vida foi um tormento. Mas uma coisa eu notei no dia em que morri: o pessoal de branco daqui é bem mais gente boa do que o daí.
domingo, 9 de maio de 2010
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Parabéns para o Prof. Flávio! Um ótimo texto, sempre com um estilo incisivo, próprio de uma inteligência incomum.
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