segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O velhinho da calçada

Havia pouco mais de um ano em que eu morava naquela rua e sempre via aquele senhor de aproximadamente oitenta anos de idade, sem camisa, sob a sombra de uma árvore tão velha quanto ele, sentando numa espreguiçadeira de pano encardido por causa do suor das costas e do tempo.
Eu, sempre ocupado, jamais conversara com ele. No máximo eu buzinava. Mas, por conta de um defeito no carro, saí, nesse dia, a pé. E lá estava o idoso, pelejando com um pedaço de carne seca:
- Tá servido?
- Não, obrigado!
- Vamos sentar?
Apesar de ter um monte de coisas para resolver, aceitei o convite e um café. Houve uma época, dizia o velhinho, em que a gente sabia o tempo da chuva, mas, hoje, quando pensa que não, tá seca; aí, mais tarde, quando pensa que não, tá inverno. E prolongou a “palestra” fazendo comparações entre o antes e o agora, numa espécie de saudade e desengano. Falou dos negócios que fez com pagamento à vista e daqueles em que a palavra era suficiente para garantir a posse do bem. Discorreu sobre o período em que estudava e até agradeceu as palmadas que levou do mestre: “Professor Sandoval era homem direito. Num dava nota a ninguém não! podia ser filho do coroné”. O velhinho até arriscou ler uma expressão estampada em minha camiseta, sem sucesso, pois era uma marca estrangeira. “Naquele tempo num tinha essas frescuradas de inglês não!” .
Embora eu costumasse falar muito, não conseguia interromper meu vizinho, que parecia não só querer me ensinar alguma coisa, mas também desabafar. Nessa tarde, ele ainda falou sobre futebol, política, música. Cantarolou algumas marchinhas de carnaval e criticou as músicas de hoje, “que só dizem imoralidade”. No meio da conversa, um menino de,mais ou menos, sete anos passa entre mim e ele. “Deus me livre, naquele tempo, interromper a conversa dos mais velhos!”. Na volta, o garoto se despede com um “tô vazando,vô”. E o velhinho,com ar de reprovação, balança a cabeça.
Ele suspirou,tomou um gole de água e continuou. Antigamente as desavenças eram resolvidas na peixeira, dizia ele. Hoje, ou o cabra paga pra outro fazer ou paga pro advogado resolver . O dinheiro e a covardia é que mandam em tudo. Nem amigo de verdade existe mais, porque quem aproxima da gente só é na vantagem.
Meu celular não parava de tocar – credores, ex-mulher em busca da pensão, namorada, mecânico, patrão –, mas estar ali era viver coisas que jamais viverei, que não terei o privilégio de contar às minhas filhas: o prazer de dormir na varanda sem temer a bandido, de caminhar pelas ruas sem ser assaltado; a emoção de pular a fogueira, a alegria de distribuir cartões de Natal. Estava diante de mim um homem que sobreviveu à seca e à fome – à base de macambira e água barrenta de cacimba, que viajou léguas em lombo de jumento atrás do sustento da família, que teve todos os dentes arrancados, que criou doze filhos – e perdeu alguns deles também . E, apesar dos percalços, orgulhava-se de jamais ter derramado uma lágrima na frente da mulher, falecida, com quem viveu mais de sessenta anos.
Eu o escutei por mais de duas horas. O repertório dele era inesgotável. Ouvi as mais variadas histórias, que versavam sobre respeito, honra, honestidade, moralidade e perseverança: um épico contado pela própria personagem. Infelizmente eu tive que ir, pois meus compromissos cobravam minha presença, incluindo uma viagem de três dias a Simões. Quando retorno à minha casa, notei a ausência do vizinho; seu assento também não estava na calçada. Ao buscar notícias sobre o paradeiro do velhinho, soube que ele falecera na noite do dia em que conversamos.
Deixou nove filhos, trinta netos, doze bisnetos, nenhuma dívida, mas também nenhum centavo no banco. Só os parentes choraram sua morte; não batizaram nenhuma rua em sua homenagem; nenhum prêmio durante a vida tampouco pós-morte foi-lhe oferecido. Viveu oitenta e sete anos, dos quais me proporciou duas longas e proveitosas horas de aprendizagem, e eu,sequer, sei seu nome.

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A defunta que não morreu (texto escrito com lágrimas)

Maria do Amparo era filha mais velha de um casal de agricultores. Nasceu pequenina, feia, pobre... e tarde, pois sua mãe a abortou umas três vezes. Como era de se esperar, no sertão mais sertão do sertão do Piauí, cresceu (nem tanto!) subserviente, ignorante e bruta.
Durante o dia, em roças alheias: capinando, plantando, colhendo, “se lascando”; à noite, em casa: lavando, cozinhando, limpando, “se lascando”; no fim de semana, mais trabalho para variar, mas, como recompensa (pois nem só “se lascando” vive o indivíduo!), era agraciada com delicadas surras de vara do ilustríssimo pai cachaceiro.
Felizmente “há males que vêm para o bem”, e Maria do Amparo, aos treze anos, fugiu de casa com um pedreiro que adorava alisar paredes... e mulheres; com o qual teve doze gravidezes. A jovem esposa agora tinha a leve tarefa de criar um monte de filhos e ainda trabalhar fora de casa a fim de auxiliar o marido nas despesas. Lavava roupa em açudes o dia inteiro; os filhos cuidavam em casa uns dos outros.
Marido, tísico, morre. Maria do Amparo, agora contemplada com a obrigação de manter todo o mundo vivo, sem plano de saúde, sem economia, sem dente. Pior do que isso! teve que eleger cada político ladrão, que só contribuía para sua miséria; teve que agradecer as migalhas que injustamente lhe pagavam por trouxas enormes de roupa; teve que ser vizinha de pessoas que humilharam, discriminaram e maltrataram sua família; teve que dar bom-dia aos policiais que torturaram um filho; teve que assistir, sem nada poder fazer, à partida de todos; teve que aceitar a triste realidade de que um e outro passavam necessidades e que não podia ajudá-los; teve que conviver com um tal “Dia da Criança” e não poder presentear os netos; teve que sonhar com uma ceia de Natal e viver o pesadelo de não realizá-la.
Maria do Amparo mal viu os filhos crescerem. Só teve de engolir a triste ideia de que eles jamais a pertenceram: foram sempre do injusto mundo. Um bilhão de vezes sentiu o medo de cada um, e nunca uma lágrima caiu por sua própria angústia; porém, pelos filhos, elas encheriam os oceanos.
Antes de completar sessenta e três anos de idade, teve que, na doença, ver seu corpo – que suportou sol, fardos e dor – definhar; teve que, sobre uma cama barata, engasgar o orgulho e aceitar visitantes indesejados – pois, nessas horas, até os algozes se compadecem e comparecem – ; teve que encarar o fim sem saber se cumprira a missão, porque os filhos, pelo mundo, esqueceram-se-lhe de agradecer.
Maria do Amparo, que não sabia ler nem comer com garfo e faca, que não aprendeu a dirigir, que não pôs os pés calejados nas areias da praia, que não foi ao cinema nem ao teatro, que jamais andou numa roda gigante... teve que morrer sem ao menos ter vivido.