domingo, 18 de agosto de 2013
Um dia de paz
Teve uma “semana horrível, de um mês horrível, de um ano horrível, de uma vida horrível” – como ele mesmo confessava aos amigos ou aos alunos do colégio público Premem, em Picos, aproximadamente 310km de Teresina. Era professor de Língua Portuguesa, entretanto mais parecia um líder sindicalista, pois a tudo associava questões políticas, mazelas sociais – como desigualdade entre ricos e pobres – , nepotismo, corrupção etc. Costumava dizer: “pobre é tão marginalizado que, sequer, vive: mas ‘veve’. Isso mesmo, ‘veve’ em bairro sem saneamento básico, ‘veve’ sem plano de saúde, ‘veve’ sem salário digno, ‘veve’ sem educação de qualidade, ‘veve’ sem segurança, ‘veve’ conformado com a ideia de ser pobre e com o fato de que político bom é o que ‘róba’, mas faz”.
Era avesso a arbitrariedades e pregava a insurgência contra qualquer manifestação tirânica. Outro dia foi multado porque não obedeceu ao comando de parar emitido por um guarda de trânsito. Em sua defesa alegou que até os imperativos, como o “pare” da questão, ficariam mais gentis com um por favor. Também foi demitido de uma escola particular por recusar-se a usar a farda exigida pelo diretor. Argumentou que não era soldado para usar uniforme e que não ajudaria a engrossar as fileiras de zumbis. E, por falar em fila, nada fazia que tivesse que passar por uma. Reclamava que era ultrajante ter de sujeitar-se a filas para receber atendimento médico, para pagar uma conta, para pegar um ônibus e, pior ainda, para comer.
Orgulhava-se de ter participado, quando adolescente, de movimentos estudantis e enchia a boca ao criticar posturas demagógicas e antidemocráticas de políticos brasileiros. Certamente se tornava alvo de retaliação , como remoções “por interesse da Administração” e suspensão com perda de vencimentos após “devido processo legal e contraditório”. Perguntado-lhe se valia a pena tudo o que fazia, ele respondia, com brilho no olhar, que era o mínimo que podia fazer para tornar o mundo menos ruim para sua filha de seis anos.
Incomodavam-lhe a desorganização no trânsito, o mau atendimento no comércio, a covardia dos amigos, a hipocrisia das autoridades, a traição das mulheres, a falta de educação das crianças. Mas, naquele dia, em que encerraria mais uma semana de muito trabalho, parecia que bons ventos sopravam. Não se incomodou com o tráfego naquela manhã em que ia ao trabalho. Em sala de aula, sentiu que a turma estava mais atenta à explicação do conteúdo; parece até que chegou a ouvir um “posso ir ao banheiro?”, em vez de “posso ir no banheiro?” ou, simplesmente, “rô no banhero”. Saindo da escola, recebeu, como forma de agradecimento, abraço de um aluno e elogios da diretora. Indo buscar sua filha em outro colégio, impressionou-se com a visão paradisíaca dos carros adequadamente estacionados, sem barulho de buzinas, e com os pais transportando pacientemente seus filhos. Sua filha beijou-lhe o rosto e lhe entregou um papel que só depois deveria ser lido. Em casa, é recebido pela esposa com um sorriso e seu prato preferido à mesa. No centro da cidade, para resolver umas coisas, alegraram-lhe o “deseja algo, senhor?” e o “volte sempre” da atendente da loja. Na banca de revista, contemplou, por uns instantes, dois senhores debatendo amigavelmente política. Lembrou-se do que lhe entregara a filha, mas, ao pegá-lo no bolso, o celular toca. Era seu irmão, com quem não falava havia vários anos, convidando-o para ser padrinho de Batismo de uma sobrinha que ele ainda não conhecera.
A sensação de paz tomava-lhe a alma. Momento em que veio à lembrança o bilhetinho da filha. Deixara-o cair quando sacou do bolso o celular. Sai, em desespero, à procura do papel. Felizmente o avista no meio da rua: era um dia tão calmo que nem vento varria os mais leves objetos. A magia daquele dia é, então, restabelecida. Abaixou-se para pegar o bilhete e, ao erguer a cabeça, uma ambulância que tentava desviar-se de um pedestre desatento o atinge. Quem me contou essa cena disse-me que não notou desespero em sua atitude, que ele cerrou os punhos, fitou o automóvel e aceitou, como a terra seca recebe a chuva, o impacto do carro. No hospital, poucos amigos e alguns familiares presenciaram a dificuldade dos enfermeiros para abrir uma de suas mãos, na qual estava o bilhete dado pela filha, com letras tímidas e dizendo assim: “Ao melhor pai do mundo. Eu te amo!”.
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