domingo, 23 de março de 2014

Diário de Weslla


         O primeiro foi Joãozinho. Eu só tinha doze anos. Ele me perguntou  em que série eu estava,  ofereceu-me sua bicicleta para eu dar uma volta e me arrancou um beijo em troca.
         Anos depois veio Ademir, que me chamou pra dançar, disse-me que eu era legal, acariciou meu cabelo e me beijou de língua.
         Raul foi o terceiro. Presenteou-me flores,  falou que me amava e arrebatou minha virgindade.
         Acelino foi o quarto. Chegou de mansinho,  jurou  nunca me magoar, levou-me pra cama, tacou-me um bucho e sumiu.
         Noel  foi  o próximo. Disse que adorava crianças; levou-me pra jantar, serviu-me o prato e me comeu.
         Abandonada por Noel, não percebi o tsunâmi  se aproximar. Fábio não só bagunçou minha cama: ele me virou pelo avesso, sugou meu sangue, arrancou meu coração, condenou minha alma e fodeu meu juízo.
         Depois dele já não havia mais nomes:  apenas números. Cinco anos no Ensino Médio, uma casa com dois cômodos, doze anos no Armazém Parahiba, dez horas de trabalho, uma hora de almoço, uma quentinha, uma colher,  um palito de dente, um pedaço de rapadura, um copo d’água, vinte homens, três filhos, trinta anos de idade.
         Os anos seguintes se passaram para mim com a mesma obrigação que o ônibus passa no ponto, ou com a necessidade que se tem de tomar água – mas não refrescante e suave como o líquido.
         Quando me dei conta, tinha-me tornado a funcionária mais antiga da empresa,  meus filhos há muito já não viviam comigo, e os amigos... que amigos?!
         Nesta manhã, quase não me levantei: a artrose é quem dita meus passos. Ao me ver no espelho, não reconheci a mulher diante de mim. Só me sobraram poucos dentes amarelados. Nem me lembro quando perdi os outros. Minhas rugas e meu cabelo ralo e branco são uma assombrosa metáfora  de uma vida que se esvaiu. No olhar, as luzes há muito se apagaram. E, se meu corpo ainda não despencou, é por pura teimosia da velhice.
         Saudade? dos filhos que mal criei, dos momentos simples com  meus pais que dispensei, das fotografias de lugares que jamais conheci, dos perfumes cujo cheiro não senti, do pedido de desculpas que  não aceitei, do abraço que recusei, das coisas que não aprendi, da vida que não vivi. E hoje, ao setenta anos de idade, com um cemitério na cabeça e a migalha do tempo que me resta, queria que alguém quisesse – ao menos uma única e última vez – , me comer.




                                                                   

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