terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Cacos de vida

Ambos eram meus amigos. E a história deles não é diferente de outras histórias: é só mais uma história de quase amor, de quase vida e  de total traição.
João era mais velho, o que, por si só, já sugeria alguns benefícios, como conforto e proteção. Maria, uma jovem bela, era, para João, uma jovem bela.
Não quero que pensem que estou do lado de um nem de outro. Na verdade, eu não ficaria com nenhum. Acho João presunçoso, cuidadoso e quieto demais, do tipo que não dança, não se embriaga e não dirige em alta velocidade. Chatice da idade, talvez! Maria, por sua vez, é  cheia de vida. Até demais pra meu gosto. Daquelas que vivem tanto o momento, que não sobrará nada para depois.
No início, como se espera de qualquer relacionamento, era tudo muito bom: troca de elogios, café na cama, torpedos o dia inteiro, postagens românticas no facebook, senhas compartilhadas, sexo frequente. Depois de alguns meses, senhas individuais, defeitos, discussões, xingamentos, ausência de sexo (pelo menos entre si!) –  silêncio. Para Maria, não parecia mais legal estar com um “ velhote velho!”. Para  João, não era promissor manter-se casado apenas com “colágeno” e “bumbum empinado”.
Não demorou  para João envolver-se com várias mulheres – mais novas, claro! Enquanto Maria, vez por outra, mantinha um amante. Após uma maratona de traições, eles sempre se reencontravam na cama. E ao reencontro se seguiam pedidos de desculpa, declarações de amor e planos. Mas não demoravam a vir a desconfiança, as brigas e, de novo, as traições.
Ela o acusava de ele consumir sua juventude; ele alegava que ela o arruinava moral e financeiramente.
Ele me confessou  que, das mais de cem mulheres que teve, todas arrancaram-lhe um pedaço: do sorriso, do tempo, do bolso, do esforço; entretanto foi Maria quem mais o despiu: do pudor, da calma, da esperança e da alma. A maldita o apartou do rumo, do prumo, de tudo.
Ela disse-me, outro dia, que ele extirpou todos os seus sonhos; que depois de João não haveria de confiar em mais ninguém. E se não confia, não se entrega plenamente. Se não se entrega, não ama. E se não ama – não vive!
Ele me dizia: “sabe aquele lance que a serpente fez com Adão, no Paraíso? Comigo foi bem pior: ela me ofereceu a maçã. Quando eu distraído a comia, ela enfiou a macieira todinha no meu cu, com folhas, frutas, galhos, tronco e raiz – e ainda fez  ‘hihi!’ . Safada!”.
Ela me contava: “pensei ter encontrado o príncipe encantado, mas achei foi um sapo –  um sapo velho, nojento  –  que vive nos esgotos , que come tudo o que é inseto, que não pode ver uma aranha, que daria a aposentadoria por  uma perereca”.
         Entre tapas e beijos, metáforas e aliterações, mentiras e mentiras, eles – pelo menos em casa – formavam um não invejável arremedo de casal. Comiam no quarto, somavam contas no quarto. No quarto se cheiravam, se amavam, se feriam, se matavam. E lá ainda cabiam sonhos e desencantos, porém não mais cabiam Maria nem João. E de tanta coisa que ali se amontoava, é de se esperar que de quarto ali não tinha nada: pois que era inteiro, embora faltasse muito;  pois que era completo, apesar dos cacos; pois que era tudo, ainda que faltasse um tanto; pois que era o bastante, mesmo faltando um monte; pois que era suas vidas – estimados leitores –, embora faltasse vida.



sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Matei minha mulher!

Não me lembro direito! O delegado se chamava Dr. Wilson Freire, que, sentado à minha frente, ouvia os relatos de como assassinei minha esposa. Narrei-lhe como ela e eu nos conhecemos; quão bonita era nossa relação; as dificuldades por que passamos; e os momentos simples, porém felizes, que dividimos. Depois me detive aos fatos que me levaram a cometer a tragédia. Ela saiu para o trabalho, e fiquei deitado. Beijou-me sorrindo e sussurrou um “te amo!” em meu ouvido. No fim do dia, infelizmente, ela não retornou e, durante três dias, não atendia ao celular. No quarto dia, sem que me restasse esperança – pois achava que uma catástrofe tivesse-lhe acontecido –, ela regressa ao lar e me conta as mais inacreditáveis estórias. Mexendo em seu celular, encontro fotos dela com um homem e mensagens antigas trocadas entre ambos. O mesmo “te amo!” que me dizia todos os dias, fazia anos, também o declarava ao amante. Fiquei louco, peguei de uma faca e a golpeei primeiro nas mãos, as quais acariciaram outra pessoa. Em seguida, furei seus olhos, que fitaram outro homem; dilacerei seu nariz, que outro cheiro sorveu; arranquei seu coração, que por mim não pulsava; piniquei seus lábios, que outros lábios beijaram; e apartei sua língua, que tantas vezes mentiu pra mim. Encerrei a narrativa dizendo ao policial que não matei por amor, nem por ciúme: a mentira me fez ceifar uma vida. E acrescentei que dor maior do que mil facadas é a dor de uma só traição; que morrer na morte é bem melhor que morrer em vida, pois ao morto-morto nada mais lhe resta – nem tristeza, nem raiva, nem dor. E o morto-vivo está fadado a vagar e a chorar e a sofrer e a nunca morrer. E, se não morre, nunca lhe cessará a dor. O delegado, que, até então, me ouvia, toma a palavra: – Meu rapaz, antes de tudo, quero que entenda que você não está numa prisão. Logo, não sou policial. E, por fim, você não cometeu crime algum. Fiquei abismado, e ele continuou: – A moça, que você alega ser sua esposa, jamais foi só sua, ou melhor, ela jamais foi sua: você a idealizou. Amigo, você sempre esteve aqui, sem progresso, girando atrás do rabo, feito um cão. Sou seu psiquiatra, meu jovem, e é hora de você deixar a loucura (sua única companheira) e partir deste manicômio. – Quer me dizer, doutor, que ela nunca me amou?! Que só queria meu dinheiro?! – Que mané dinheiro! pois nunca o teve! – respondeu-me. – E o amor? – insisti. – Deixa de ser ingênuo, cara! amor é só um substantivo, que nem concreto é! Não acreditei em uma só palavra dita por ele – a não ser a classificação do substantivo. Afinal, se vivi sempre uma farsa, ele também poderia ser mais uma mentira. Precisava me certificar: – Mas Elvis não morreu?!! – Tá mortinho da silva! – respondeu-me. – Pelo menos o rock in roll é o que mais toca, não é? – Claro que não, estimado doidinho! o que mais toca é o lekleklek! E já que estamos falando de música, esquece aquela de Renato Russo: “Mas é claro que o sol vai voltar amanhã...”. Porque isso não é uma metáfora: é tão-somente o movimento de rotação da Terra. – E quanto àquelas crianças de Caverna do Dragão, elas encontram o caminho para casa? – Nan nan nin nan não! Ah! e o Mestre dos Magos é do mal, viu?. – E mais: Frajola nunca comeu Piu-piu; Coiote continua se lascando com Papaléguas, e espinafre não é um superalimento. – E as meninas superpoderosas?! – desiludido, indaguei. – Nem se empolgue, meu filho! é apenas um desenho animado. – E agora quem poderá me defender?! – Nem vem com essa?! Chapolin não é super-herói coisíssima alguma: é só um programa para crianças e para adultos lesados. Mesmo não acreditando nas coisas que ouvi, eu tive que deixar aquele lugar. Saí a esmo, em busca de não sei o quê, e cheguei a lugar algum. Não encontrei casa, nem parentes, nem amigos: só ruas vazias. Voltei, então, à clínica. Seguindo meus próprios passos, deparei-me com um terreno baldio: não havia clínica. Portanto não havia médico e, consequentemente, eu não existia, o paciente. Sendo assim, não havia fatos narrados, não havia nada. Ora, se nada existia, o que eu era?! O pesadelo de alguém, a personagem de um autor surrealista, a estória de um mentiroso compulsivo, o delírio de um viciado ou a fantasia de um obnubilado?! A conclusão a que cheguei, prezado suposto leitor, é que essa história não aconteceu, tampouco a escrevi, nem você a leu. (AUTOR: não há. LIVRO: ? DISPONÍVEL EM: sua imaginação, talvez)

domingo, 18 de agosto de 2013

Um dia de paz

Teve uma “semana horrível, de um mês horrível, de um ano horrível, de uma vida horrível” – como ele mesmo confessava aos amigos ou aos alunos do colégio público Premem, em Picos, aproximadamente 310km de Teresina. Era professor de Língua Portuguesa, entretanto mais parecia um líder sindicalista, pois a tudo associava questões políticas, mazelas sociais – como desigualdade entre ricos e pobres – , nepotismo, corrupção etc. Costumava dizer: “pobre é tão marginalizado que, sequer, vive: mas ‘veve’. Isso mesmo, ‘veve’ em bairro sem saneamento básico, ‘veve’ sem plano de saúde, ‘veve’ sem salário digno, ‘veve’ sem educação de qualidade, ‘veve’ sem segurança, ‘veve’ conformado com a ideia de ser pobre e com o fato de que político bom é o que ‘róba’, mas faz”. Era avesso a arbitrariedades e pregava a insurgência contra qualquer manifestação tirânica. Outro dia foi multado porque não obedeceu ao comando de parar emitido por um guarda de trânsito. Em sua defesa alegou que até os imperativos, como o “pare” da questão, ficariam mais gentis com um por favor. Também foi demitido de uma escola particular por recusar-se a usar a farda exigida pelo diretor. Argumentou que não era soldado para usar uniforme e que não ajudaria a engrossar as fileiras de zumbis. E, por falar em fila, nada fazia que tivesse que passar por uma. Reclamava que era ultrajante ter de sujeitar-se a filas para receber atendimento médico, para pagar uma conta, para pegar um ônibus e, pior ainda, para comer. Orgulhava-se de ter participado, quando adolescente, de movimentos estudantis e enchia a boca ao criticar posturas demagógicas e antidemocráticas de políticos brasileiros. Certamente se tornava alvo de retaliação , como remoções “por interesse da Administração” e suspensão com perda de vencimentos após “devido processo legal e contraditório”. Perguntado-lhe se valia a pena tudo o que fazia, ele respondia, com brilho no olhar, que era o mínimo que podia fazer para tornar o mundo menos ruim para sua filha de seis anos. Incomodavam-lhe a desorganização no trânsito, o mau atendimento no comércio, a covardia dos amigos, a hipocrisia das autoridades, a traição das mulheres, a falta de educação das crianças. Mas, naquele dia, em que encerraria mais uma semana de muito trabalho, parecia que bons ventos sopravam. Não se incomodou com o tráfego naquela manhã em que ia ao trabalho. Em sala de aula, sentiu que a turma estava mais atenta à explicação do conteúdo; parece até que chegou a ouvir um “posso ir ao banheiro?”, em vez de “posso ir no banheiro?” ou, simplesmente, “rô no banhero”. Saindo da escola, recebeu, como forma de agradecimento, abraço de um aluno e elogios da diretora. Indo buscar sua filha em outro colégio, impressionou-se com a visão paradisíaca dos carros adequadamente estacionados, sem barulho de buzinas, e com os pais transportando pacientemente seus filhos. Sua filha beijou-lhe o rosto e lhe entregou um papel que só depois deveria ser lido. Em casa, é recebido pela esposa com um sorriso e seu prato preferido à mesa. No centro da cidade, para resolver umas coisas, alegraram-lhe o “deseja algo, senhor?” e o “volte sempre” da atendente da loja. Na banca de revista, contemplou, por uns instantes, dois senhores debatendo amigavelmente política. Lembrou-se do que lhe entregara a filha, mas, ao pegá-lo no bolso, o celular toca. Era seu irmão, com quem não falava havia vários anos, convidando-o para ser padrinho de Batismo de uma sobrinha que ele ainda não conhecera. A sensação de paz tomava-lhe a alma. Momento em que veio à lembrança o bilhetinho da filha. Deixara-o cair quando sacou do bolso o celular. Sai, em desespero, à procura do papel. Felizmente o avista no meio da rua: era um dia tão calmo que nem vento varria os mais leves objetos. A magia daquele dia é, então, restabelecida. Abaixou-se para pegar o bilhete e, ao erguer a cabeça, uma ambulância que tentava desviar-se de um pedestre desatento o atinge. Quem me contou essa cena disse-me que não notou desespero em sua atitude, que ele cerrou os punhos, fitou o automóvel e aceitou, como a terra seca recebe a chuva, o impacto do carro. No hospital, poucos amigos e alguns familiares presenciaram a dificuldade dos enfermeiros para abrir uma de suas mãos, na qual estava o bilhete dado pela filha, com letras tímidas e dizendo assim: “Ao melhor pai do mundo. Eu te amo!”.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Eu, um homem mau

Na infância, eu era um bom menino, como diziam os mais velhos. Não apelidava os amiguinhos, não provocava os loucos, não furtava mangas em árvores, não maltratava os animais. Uma rolinha, sequer matei. Claro! comi, mas passei dias me sentindo culpado, imaginando-me quebrando, com os dentes cariados, os ossos frágeis – porém gostosinhos – , do pobre pássaro. Tive uma adolescência difícil. Nem as mocinhas me queriam, nem eu insistia. Nunca fui do tipo bonito, bonitinho ou mais ou menos: era feio mesmo! A feiura, na verdade, fazia parte de minha vida. Minha casa era feia, e minha professora também; eram feios meus irmãos; meus colegas feios eram bem feios; até a garota de quem eu gostava era feia (Ela se achava bonita, mas era feia!). Apesar disso, eu não me importava, porque eu era um bom rapaz, e, conforme Provérbios, “O homem de bem alcançará o favor do Senhor, mas ao homem de intenções perversas Ele condenará”. Fui professor durante vinte anos, pois via na educação não só o meio de construção de uma sociedade justa, como também a área de maior reconhecimento do profissional. Na política, desde jovem, tive um papel preponderante em favor da democracia: ora presidente de associação de estudantes, ora gerente de rádio comunitária. Até pintei o rosto para pedir o impeachment do presidente Collor. Pois bem! de bom menino, passei, ao olhos de muitos, a revoltado ou louco. De fato, não pode ser normal um indivíduo que sofre a dor dos outros. É muita estupidez ter a chance de desviar merenda escolar com a diretora, e o que faz é denunciá-la. É burrice demais poder ficar ocioso durante a aula, só papeando com as alunas; entretanto, vai é ficar, cada segundo, escrevendo e explicando. É ser muito idiota abrir mão de estar ao lado de políticos – desonestos que sejam – , recebendo favores, para se opor, gratuitamente, a eles. Não poderia estar em sã consciência uma pessoa que não possua um “gato” na energia elétrica ou que devolva o troco lhe passado errado. Da mesma forma, é tremenda tolice um vendedor de leite não fazer render seu produto acrescentando a ele um pouco de água; ou um proprietário de restaurante não servir a um novo cliente as sobras da comida do cliente anterior. É tão maluco, senão otário, o cara que passa horas enviando mensagens de amor para uma mulher, que a trata carinhosamente e, o pior, que diz que a ama. Logo, o bom é ser mau. Hoje em dia, durante a aula, passo a maior parte do tempo sentado. Levo trinta minutos para fazer a chamada; dez minutos falando sobre futilidades (festas, facebook, fuxicos); e nos dez minutos finais, encerro minha apresentação com chave de ouro: fico me gabando. Não falo mal dos corruptos. Pelo contrário, puxo o saco e os defendo até a morte. Estou me lixando para o bem comum. Se me pagam, têm meu voto, ou melhor, têm o que quiserem de mim (Adoro!). Quanto aos colegas de trabalho, dissimulo um bom relacionamento, mas vivo passando-os para trás. Implantar a discórdia entre eles é meu maior prazer. Mulher, quanto mais, melhor! Sou um notável cafajeste. Outro dia, taquei cachaça numa garota, fotografei-a nua e postei as fotos nas redes sociais. E nada de presentes, de carinho, tampouco de “eu te amo”: eu as trato é na grosseria! Não nutro o menor respeito pela lei. Dirijo na contramão, não paro no sinal vermelho nem antes da faixa de pedestre. Na verdade, quando vejo um transeunte, faço é acelerar o automóvel a fim de dificultar sua travessia. Certa vez, mirei o pneu do carro numa poça e atirei lama numa velhinha (Foi engraçado! rs). Não ajudo a ninguém. Quando posso, tiro moedas de mendigo, doce de crianças ou dou murro em bêbados. Só penso em mim. Sou ganancioso, vingativo, mentiroso e invejoso. Jamais espere de mim um favor, pois não farei. Não me convide à sua casa, que darei em cima de sua esposa. Não me conte um segredo, porque o divulgarei. Não me peça um copo d’água: cuspirei dentro. Não me vire as costas, que vou falar mal de você. Não confie em mim, pois posso destruir sua vida. E não me ame, porque nunca a amarei. Por fim, caro leitor, pode fingir que gosta de mim, pois nunca gostei de você!

domingo, 24 de fevereiro de 2013

O bom e velho Zé Modesto

Existem várias formas de se obter vida confortável . Uma delas é herdar. Situação em que a expectativa do nascimento já é por si enorme e suficiente chance de vitória. Outra, acertar os números da loteria, o que, para muitos, é mais difícil do que ser acertado bem na cabeça por um meteoro. Uma terceira maneira, porém não aconselhável, é roubar. Entre inúmeras opções, morais ou ilegais, cite-se ainda exercer a medicina em pequenos municípios e/ou fazer da política uma profissão. Em se tratando do famigerado Zé Modesto, nenhum dos fatos acima aconteceu. Em meio às atividades e negócios que desenvolveu para ser o homem bem-sucedido que se tornou, o que ele mais fez foi propaganda enganosa de si mesmo. Dizem as más línguas que, quando ele foi realizar teste para obter carteira de motorista, gabou-se tanto de sua habilidade ao volante, que o instrutor, supondo ser constrangedor para um perito ser submetido a exame tão comum, expediu seu documento sem que ele sequer entrasse no veículo. Fico elucubrando acerca do que o espermatozoide que lhe deu origem fez para deixar os trezentos milhões para trás. Devo concordar que Zé era realmente bom em uma coisa: dizer que era bom. De tal sorte que formava séquitos na escola onde lecionava. Ah! esqueci de mencionar que ele era especialista em faz-de-conta-que-ensina; e, óbvio, em escola que aluno faz de conta que aprende, pseudoprofessor brilha mais do que o sol. E nessa de pregar veemente que era “o cara”, Zé convencia até as doenças; pois nunca se soube que ele tenha ido a um médico ou se queixado de qualquer sintoma. Foi assim a vida inteira. Mulheres o desejavam só por ouvirem dizer o quão viril ele era. Contudo, manter o status que, de menino, conquistara, exigia-lhe, às vezes, o dom do puxa-saquismo; como da vez em que ele gastou todo o salário com um presente para o cachorrinho de estimação da proprietária do colégio. Conta-se, inclusive, que, quando a bajulação não surtia efeito, ele usava do dinheiro economizado para comprar favores, títulos, aprovações, amigos. Não posso dizer que o farsante não tentou ser de fato competente, merecedor das realizações: as derrotas sofridas, quando ainda jovem (e certa quantidade de mau caráter ), é que fizeram dele um competidor sem escrúpulos. Entretanto, admito que, desde criança, ostentou a fama de bom. Bom parceiro, mesmo dando em cima das amigas da namorada e culpando-as de assédio quando a parceira descobria; bom filho, apesar de judiar, frequente e furtivamente, do irmãozinho; bom aluno, ainda que as boas notas fossem obtidas ilicitamente; bom amigo, embora puxasse o tapete até dos mais íntimos; bom vizinho, mesmo que falsamente denunciasse a vizinhança de manter gato na energia elétrica; bom sujeito, sem que gratuitamente praticasse o bem. E tudo funcionava às mil maravilhas, pois a “mentira dita mil vezes vira verdade” Na eleição passada, dando continuidade a uma trajetória de sucesso, o intrépido vigarista tornou-se prefeito de uma cidadezinha do Piauí – cargo aparentemente criado para indivíduos de sua estirpe. E mesmo enganando a todos, e mesmo conquistando tantas coisas, e mesmo tendo tido vida longa e saudável, grande mesma era sua frustração, por não conseguir enganar a si próprio. Dia quatorze de janeiro de dois mil e treze, de causa não identificada, aos noventa e nove anos de idade, morre José Modesto Boaventura da Silva – querido filho, amado pai, estimado mestre, político ético, amante da natureza, apaixonado pelo país... uma fraude.