sábado, 20 de novembro de 2010

DESAMOR

Hoje acordei com ódio de mim;
Tanto amor que em Margarida investi,
Mais de mil mortes de amor morri,
Nem bem-querer tive, ingrata, sim!

No almoço, regurgito minha própria ojeriza.
De louco, idiota - de tudo ela me chama.
Se nunca me amou, pois agora é que não ama!
Não vale viver, porque vida vil não é vida.

A mesa de jantar do sofrimento é o altar.
Dei flores e afeto, felicidade quis,
Mas não faço falta, sequer filhos fiz.
Diz que nem Deus a faz ficar.

Velo seu sono; quem a abraça é nosso colchão.
As malas num canto; a noite vai passar.
Que plano?! que crime pra ela não me deixar?!
Amanhece! não há sol, pássaros não há, Margarida também não.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Lá em Mediocrópolis

Não há lugar igual. Iguais mesmas só as coisas de Mediocrópolis: as maldades, os vícios, as manias. As pessoas de lá são tão parecidas que um morador chegou a passar dez anos com uma família, supondo ser a dele.
Mediocrópolis foi colonizada pelos parasiteses, porém outros povos ali se se fixaram - corrupteneses, covardeses e carnavaleses. De sua formação até hoje não se verifica nos livros de História nenhum feito digno de heroísmo, salvo um massacre de pobre aqui, outro acolá.
Persiste em Mediocrópolis a escravidão, não de negros, nem com as características de outrora - é a escravidão consentida. Os grupos subjugados são abundantemente encontrados, sem resistência, em qualquer parte do território nacional. São os chamados puxa-sacos e periguetes - tribos moralmente inexpressivas, adquiridas por meio do escambo: o cidadão fornece bebida, tira-gosto e umas voltinhas de carro; e, em troca, os neoescravos lhe dão qualquer coisa, qualquer coisa mesmo!
A tranquilidade sempre foi marcante em Mediocrópolis, graças ao elogiável comodismo em todos os setores. Nas escolas, por exemplo, a didática dos professores é tão admiravelmente semelhante que, muitas vezes, os alunos não sabem a que aula estão assistindo. E ai do atrevido que ousar lecionar de maneira diversa! Digo a mesma coisa dos enxeridos e dedicados alunos.
Em Mediocrópolis é bom demais! Os habitantes nem precisam trabalhar para comer, porque o Estado lhes dá comida em troca de simples voto. E, quando se adoece, não é necessário preocupação com a gravidade da doença, tampouco com a qualificação do médico, uma vez que este vai tratar o dinheiro, e não a enfermidade.
Visando à manutenção da paz em Mediocrópolis, não se combate o crime: é mais vantajoso beneficiar o bandido com leis. Também não se erradica o analfabetismo: o prático é pôr o analfabeto na universidade.
Não há que se cultivar, nessa fascinante nação, valores morais nem boa aparência, pois apenas a moeda condiciona as relações interpessoais: se mais dinheiro, mais amigos. A falta de dinheiro, em Mediocrópolis, implica ausência de um amor, solidão funesta, vida maldita.
A aversão à mudança é flagrante em todos os assuntos lá em Mediocrópolis. Na política, por exemplo, não há embate: só coalizão e conformismo. De tal forma que se presencia candidatos "divergentes" utilizando a mesma estratégia de campanha - a imagem do Imperador Luís Inácio I, o Lula-mor.
E para que transformações, se inclusive as criancinhas são todas de uma meiga e amável falta de educação?!
Vez por outra,focos se rebelam em Mediocrópolis. São jovens honestos e orgulhosos, e até mesmo intelectuais e escritores - chamados pelos mediocropolenses de "otários" -, que se contrapõem ao regime mediocritário, com ideias anticonformistas e éticas. Há quarenta anos eram combatidos com mão de ferro pelos órgãos repressores militares. Hoje, apesar da redemocratização do país, os poucos otários, que não morreram de angústia, sofrem torturas inimagináveis - como sessões de música ruim nas rádios, nas ruas e até nas escolas -, quando não são forçados ao exílio domiciliar a fim de fugirem dos hábitos sociais dos mediocropolenses.
A vida em Mediocrópolies é tão previsível e feliz que parece incompreensível não querer adaptar-se a ela. Foi o que aconteceu comigo, por isso vivo no degredo na distante ilha da Caneta.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Pi-a-uí ou Pi-au-í?

Observe que a semivogal "u" está entre duas vogais: "a", inexoravelmente vogal, e "i", tônico e acentuado graficamente. Em sala de aula, costumo brincar que a semivogal adora puxar o saco da vogal. Nesse caso, qual das vogais será bajulada? As duas: pi-au-uí. Ao prolongamento da semivogal na pronúncia dá-se o nome de "glide", leia-se "glaide". Como acontece com goi-ia-ba, mai-io, ji-boi-ia etc. É certo que, na separação de sílabas, a semivogal fica com a vogal que a antecede (é o chamado "com quem chegar primeiro"), a exemplo de pi-au-í, goi-a-ba, mai-o e ji-boi-a.

sábado, 17 de julho de 2010

O INCOMPREENDIDO

O meu perfume agrada aos bons apreciadores,
E meus espinhos ferem os prepotentes, intrusos;
Mas não sou flor, mas não sou rosa.

O teu mau paladar não me saboreia,
O meu corpo tu não digeres;
Mas não sou fruta e nem sou carne.

A minha claridade ofusca a tua visão míope,
E o meu grito estronda nos teus ouvidos surdos;
Mas não sou luz, tampouco som.

E, se voo, minhas asas batem no teu queixo erguido;
E, se nado, minha calda joga água no teu sapato novo;
Mas não sou ave, muito menos peixe.

Sou a flor da primavera perdida no outono,
Sou a baleia que amamenta seu filhote nas areias do Saara,
Sou da água o pó; da ferida, a dor;
Sou do injustiçado o ódio; da mãe, o amor.

medrO e ossergorP

O melhor professor é aquele que aprova todos os alunos e preenche impecavelmente os diários. O que leciona, mesmo que de forma sublime, encantadora e voltada ao processo ensino-aprendizagem, é denominado problemático .
O bom político é quem quebra meu galho; não importa a fome dos outros. O policial exemplo é o que convive com os criminosos, até bebe cervejinha e divide intimidades com eles. Minha admirável vizinha é Weslla, pois me conta importantes fuxicos: que Keyth só come arroz com ovo e que a luz de Flávio fora cortada por falta de pagamento. E há uns amigos que adoro, porque estão sempre na farra comigo e me elogiam. Se falam mal de mim eu não fico sabendo. Já a namorada ideal é a garota que me carrega a todas as festas, que se embriaga e se droga comigo, que não se preocupa com gravidez nem com ressaca, que adora meu carro e os presente, que arrisca trabalho, e concursos públicos, e família por uma noite de sexo, e que, sobretudo, é bonita e se veste bem.
A formação moral do indivíduo acontece basicamente no seio familiar. Eu e meus irmãos nos divertíamos pegando manga e umbu em roças alheias; faltávamos às aulas de D. Irene para nadarmos no barreiro de Seu Neco e gozávamos da cara de Pe. Ermínio, por causa do seu jeito sereno e delicado – parecia o próprio Cristo falando. Minha mãe fumava em casa sem parar, mas não permitia que os filhos o fizessem também. Meu pai era uma figura. Não se preocupava com questões sociais nem políticas e nunca me enchia o saco pedindo para eu ser médico, tampouco me pressionava para que eu procurasse trabalho. Bons tempos aqueles!
Guarda de trânsito competente não multa; governo justo não tributa; marido fiel não expõe a amante; esposa leal não deixa o marido quando sabe da amante. Pais nunca punem: presenteiam; universidade não ensinam para a vida: empurram pra vida; confissões não absolvem pecados: limpam a ficha para se pecar mais ainda; ladrões não roubam: ensinam o cidadão a fechar a porta e a segurar mais forte o celular.
“Ouviram do Ipiranga as margens plácidas de um povo heroico o brado retumbante” – entendeu?! Às vezes até compreendemos as inversões: o péssimo é ter que conviver com elas.

Enquanto leciona o professor...

- Que aula mais chata! – cochichou uma colega à outra, lá no canto esquerdo da sala.
- Não aguento essa matéria. Sou mais História – confidencia uma moça de minissaia a um rapaz, no centro do recinto. “E eu prefiro você, gostosa!” (pensa ele).
Noutra parte da sala, as donas da verdade “viajam”:
- É gay esse professor – a primeira dá o veredito.
- Não, mulher! cê acha?!
- Por falar em gay, sabia que Wesla deixou Wosh porque o pegou com outro? – toma a conversa “ad infinitum” a última.
PSSSSSSIIIIU!
- Ei! (pescoço noventa graus à esquerda, cotovelo no braço da cartei do amigo) tou malhando na Atlética.
- Maaassa, ó!
CELULAR TOCA
- Não posso falar agora (e falando!).
- Tou lhe esperando aqui na pracinha – do outro lado da linha.
- Peraí, que essa droga de aula não acab a nunca (e falando!).
TOC TOC
- Wyleish estuda aqui?
Para-se a aula. Todos se viram para um e outro lado. Levanta-se uma menina feia, empurra a porta (mas é para dentro que se deve abri-la), puxa a porta, que esbarra em seu pé. A turma ri, a feia sai.
PSSSSSSSSSIIIIIIU!
- Armaria! (ela quis dizer ave-maria) não gostei do show da banda bobagem-com-sacanagem-e-nada-de-futuro.
- Pois pra mim foi tudo de bom! Fiquei com Wessllow do segundo ano.
- Oxe! e a namorada dele?!
- E foi por isso mesmo que o arrochei.
Wislley cochila no fim da sala. Wenddley cola um cartaz em suas costas: “MI CUSPÃU”. Wellen lê a revista essencialíssima aos vestibulandos, O fuxico.
- Fuuuum! peidaram!
- Tá morto!
- No dia em que eu soltar um desses, podem me enterrar.
Esse diálogo de fenomenal importância à raça humana leva um bom tempo.
- Não entendo nada que esse cara fala – é sobre o professor.
- Eu acho que ele não sabe coisa alguma.
- Doidinho mais paia!
- Olha só a tela dele!
- É, velho! mas ele tá pegando uma doidinha do terceiro ano.
- Também! o cara é professor! conhece meio mundo de gata.
- Só espero que ela não dê em cima da minha!
PSSSSSSSSSSSSIIIIIIIIU!
- Que fome eu tou!
- Vamos na cantina!
As mortas de fome arrastam seus assentos, caminham até a porta, olham para o professor e o esperam falar algo, abrem a porta e saem. A turma assiste à cena em câmera lenta.
ENTEDERAM? (um silêncio abrupto)
A feia retorna. A campainha toca.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Que mudou na acentuação dos hiatos?

No hiato, a vogal tônica e repetida já não tinha acento gráfico (xiita, por exemplo); salvo por respeito a outra regra - proparoxítono (seriíssimo), e paroxítono terminado em ditongo (ou proparoxítono eventual, ex.: equiídeo). Que mudou, acho que para melhor, é agora se poder dizer que,considerando as exceções citadas, a vogal tônica e repetida dos hiatos não comporta acento; a exemplo da primeira pessoa do presente do indicativo dos verbos terminados em OAR - perdoo, enjoo, magoo etc. - e do famoso mnemônico CREDELEVE: creem, deem, leem, veem e vocábulos cognatos.

domingo, 9 de maio de 2010

O dia em que morri

Eu faria sessenta anos em doze de setembro de 2010. Era uma terça-feira, treze de abril. Lamento não informar a hora: é que eu estava ocupado, morrendo.
Recordo-me do barulho, de muitas vozes, de gemidos e de coisas do tipo “é particular?”, “qual é o plano de saúde dele?”, “que aconteceu?”. Também me lembro do pessoal de branco mexendo aqui e acolá em mim, com a mesma delicadeza que um mecânico fuça um carro. Em seguida, minha visão clareou um pouco, meus ouvidos escutavam melhorzinho, porém meus movimentos padeciam. Vi minha mãe, velhinha, acariciando-me e chorando, enquanto o pessoal de branco tentava mantê-la afastada. Meu pai estava num canto da enfermaria, como se lamentasse algo; sentindo-se, talvez, impotente ante meu estado; e o pessoal de branco, tranquilo, com o esnobe ar de controle da situação. Nesse ínterim, um filme me vinha à mente: Meus filhos! meu Deus! que eu poderia ter feito mais por eles com a condição financeira que tive?! Será que fui justo? Aquelas palmadas foram oportunas? E aquele brinquedo que nunca pude comprar?! Talvez eu os tenha abraçado pouco. Vão se lembrar com carinho de mim? Quem vai protegê-los? E minha esposa? por que menti tanto pra ela? por que não a beijei mais? não a amei mais?
No dia em que morri, pedi a Deus mais uns dias de vida para que eu pudesse me desculpar com meus pais, pois eles estavam certos. Mais um tempo quis para fazer com a família aquela viagem que sempre prometi, e a tatuagem com “TE AMO, BIANCA!” que hesitei. Nesse infeliz dia, implorei mais uns segundos para rever algumas escolhas.
Incrível que, no dia em que morri, não me preocupei com céu nem inferno, mas com as contas que não paguei, com o o único segredo que guardei e com os males que causei (o eco é de propósito. Afinal, quem, na efêmera vida, está livre de todos os vícios?!).
A essa altura, a dor que, há horas, me varava o corpo já não tinha importância. Incomodava-me a morte me sufocando sem que o pessoal de branco percebesse meu desespero. Era como tentar acordar de um pesadelo terrível.
No dia em que morri, não percebi cheiros, nem sabores, nem sorrisos: apenas dor, agonia e lamento. Não entendo o porquê desse sofrimento último se toda a minha vida foi um tormento. Mas uma coisa eu notei no dia em que morri: o pessoal de branco daqui é bem mais gente boa do que o daí.